Contos e poesias

ZÉ MUIÉ
Recebeu o apelido de Zé Muié, mas isso não significa que ele era “viado” não, muito pelo contrário. Ele foi apelidado pelo fato de ser mulherengo demais da conta.
      Zé era vaqueiro, moreno, alto, forte, dentes claros e perfeitos, olhos castanhos e cabelos lisos e pretos, tão pretos a ponto de brilhar e refletir uns tons azulados quando o sol incidia diretamente sobre eles. O olhar era atento e penetrante e o cabelo, ele o mantinha bem aparado à altura dos ombros. Ele dizia ser meio “enraçado” a bugre e um vasto sorriso iluminava seu rosto, e agitava sofregamente o cabelo, sempre que ouvia um comentário a cerca de sua vasta cabeleira.
      A vaidade era uma característica que marcava fortemente a personalidade do vaqueiro: calça jeans, camisa xadrez, botas de bico fino e salto alto, cinto largo e chapéu de aba larga. A parte frontal da aba, ele trazia bem inclinada para baixo e as laterais da aba, levemente enroladas para cima.
      — Por baixo da aba do meu chapéu, eu olho as pernas da mulherada e ninguém nota — comentava maliciosamente.
      Zé era extremamente festivo, forrozeiro, educado e se expressava muito bem, apesar de ser completamente analfabeto. Era um excelente funcionário: responsável, correto e rigoroso em seus afazeres. Quando alguém comentava seu perfeccionismo, dizia: — É pra ninguém chamar minha atenção. Frequentava todas as festas que aconteciam na região e lugarejos vizinhos. A Festa do Divino, tradicional na cidade de Santa Maria do Suaçuí, essa ele não perdia por nada desse mundo. Esboçando um sorriso que prenunciava aventura, Zé argumentava: — Na Festa do Divino, não fica ninguém na roça, todo mundo vai pra cidade.
      No dia da festa, ele acordava bem cedo para adiantar seu serviço. À tarde pegava um bom cavalo e arreava no capricho. Tomava banho, se perfumava e escolhia a roupa com cuidado desmesurado. A calça tinha que ser bem justa, a bota não podia apertar o calo, o colarinho devia estar bem firme e o chapéu não podia apresentar a menor mancha de poeira ou sequer uma lãzinha agarrada nele.
      Ao chegar na cidade, amarrava o cavalo no quintal da casa do patrão, desarreava-o e dava-lhe de beber. Realizava essas tarefas sempre conversando com o animal. — Eu não vou deixar o bichinho com a sela no lombo até de madrugada sem precisão, pois, o cavalo é o melhor amigo do vaqueiro. Enquanto falava, acariciava o puro-sangue que balançava o pescoço em sinal de aprovação e exibia a crina dourada, longa e sedosa. Até parece que o cavalo havia aprendido aquele gesto com o próprio vaqueiro.
      Após deixar o cavalo amarrado, entra na casa do patrão e cumprimenta a todos, apertando a mão de um por um. Porém, saúda o patrão e a patroa expressando o mais profundo respeito.
      Sai pra rua, desce devagar e atento a cada pessoa, cada objeto, cada movimento... Nada escapa ao olhar aquilino. Entra no primeiro bar que encontra aberto, aproxima-se do balcão e diz:
      — Me dá um maço de cigarro aí, do mais caro que tiver, desse de caixinha.
O balconista traz um maço de embalagem branca com nome estrangeiro e escrito com letras vermelhas.
      — Pode ser esse?
      — Pode. Eu não tenho vício de fumar, mas dia de festa eu gosto de fumar um cigarrinho só pra tirá onda. — Falava como se quisesse camuflar seu analfabetismo.
      Encosta na porta do bar e acende um cigarro. Passa alguém conhecido e ele aproveita para tirar um dedo de prosa. Fuma o cigarro até ao meio, aplica-lhe um piparote e o cigarro sobe muito alto e desce rodopiando em forma de parafuso e se estatela no meio da rua. Ele fazia aquilo com muita precisão e graciosidade.
      Sai do bar, dá uma volta pela Praça do Mercado, visita algumas barracas de camelô e depois segue rumo à Igreja Matriz. Sobre a ponte que liga a Praça Juca Lopes à Praça Luiz Temponi, ele para, apóia o pé esquerdo no guarda-mão e com o dedo indicador, empurra o chapéu para trás e fica observando as pessoas que passam. São grupos de idosos, casais de idosos, casais de namorados, grupos de jovens, rapazes e moças solitários. Para cada grupo de moças ou moça que passa sozinha, Zé se põe a filosofar:
      — Eta meu Deus! Tanta mulher bonita aqui e minha mãe precisando de uma nora!
      — Um homem sozinho é que nem cavalo que não deu amansação.
      — Mulher, para mim, é tudo nesse mundo: minha mãe me deu a vida, você tira meu sossego e paixão demais vai acabar me matando.
      De repente, concentra-se em seus pensamentos, dá um longo e profundo suspiro, traga lenta e vagarosamente e da mesma forma expele a fumaça no ar. Atira a guimba para cima que ao cair com a brasa para baixo, espalha fagulhas sobre a ponte bem próximo de uma garota que passa naquele momento apresentando abstração. A moça se assusta, dá um passo para trás e trava-se um curto diálogo entre os dois:
      — Se assuste não! Isso é estrela caindo do céu pra enfeitar seu caminho, — fala Zé se expressando de forma bem galante.
A garota olha para ele demonstrando interesse e argumenta:
      — Vai à missa não, hein? Já estamos atrasados.
      — Eu tava esperando um convite, — retruca ele com um largo sorriso estampado no rosto.
A garota lhe oferece o braço e os dois seguem conversando formalmente, braços dados, rumo à igreja. Ele diz que seu nome é José Antônio da Silva, mas é conhecido por Zé Vaqueiro na fazenda onde trabalha. Menciona ter outro apelido, porém, não o diz. Apenas diz com um risinho tímido que é conversa fiada dos amigos. Ela diz se chamar Angélica e que também trabalha em uma fazenda, porém, como professora. Angélica fala da profissão com uma pontinha de orgulho. Zé Vaqueiro lembra o episódio do cigarro e diz que um anjo — alusão ao nome dela — precisa mesmo é andar por caminhos enfeitados com estrelas.
      Quebrado o momento de formalidade, os dois prosseguem jogando conversa fora, andando o mais devagar possível sem se preocuparem com a missa que até já havia começado. Dava-se pra ouvir os cânticos introdutórios.
     Ao findar a missa, Zé pede licença a Angélica e se afasta para conversar com um amigo, ali mesmo na escadaria da igreja. A conversa se resume num convite feito ao amigo para, juntos, irem à zona boêmia. O amigo de Zé fica pasmo e exclama estupefatamente:
      — Zé, deixar uma garota linda daquele jeito e ir pra zona! Tá doido, tá doido.
Zé olha fixamente para o amigo e com a maior calma do mundo, lhe diz:
      — Mulher daquele jeito é que nem maga-sena. Só dá pra carioca, paulista, mineiro da capital, mas a rapaziada aqui do interior não ganha nada não.
O amigo aceita o convite. Zé se despede de Angélica, marca um novo encontro e os dois amigos partem pra gandaia. No trajeto, o amigo procura alertar Zé sobre o perigo de uma doença nova que apareceu e que a pessoa pega tendo relação com mulher, a tal de AIDS.
      — Tem cura não Zé, mata mesmo. É preciso ter muito cuidado, principalmente você que não gosta de usar camisinha. — O amigo fala de forma autoritária.
Zé replica que isso é doença de mulher de cidade grande, que tem muitos clientes, essa raparigada que anda até passando fome por falta de freguês não pega esse tipo de doença não.
      Alguns dias se passaram. Zé retorna à cidade para avisar ao patrão que estava faltando alguns produtos veterinários na fazenda e aproveita para comprar algumas coisas de uso pessoal. Ao passar pela Praça do Mercado, um aglomerado de pessoas chama-lhe a atenção e, curioso como era, aproximou-se para conferir. Tratava-se do esclarecimento feito por algumas senhoras sobre a contaminação pelo vírus da AIDS e os possíveis métodos de prevenção. Zé ouviu com um certo desdém mas permaneceu no local até ao final da palestra. Recebeu um kit contendo camisinhas e folhetos explicativos e os trouxe para a fazenda.
      Após a maciça divulgação através do rádio, jornal, televisão e por voluntários nas praças das cidades, Zé confessou estar receoso com a doença e declarou aos amigos estar fazendo uso da camisinha.
      A Sol Nascente estava em festa, pois chegara à fazenda o filho do patrão, médico residente em Belo Horizonte.
      Dr. Adalberto, o médico filho do patrão era uma muito amável, honesto e caridoso e por isso tornou-se uma pessoa muito querida e respeitada por todos os funcionários da fazenda e demais pessoas da comunidade, embora fosse muito exigente e detalhista. Quando chegava à fazenda nada passava despercebido ao seu olhar. Vistoriava das pastagens aos currais, da sede da fazenda aos alojamentos dos vaqueiros. Conversava com os empregados, queria saber tudo nos mínimos detalhes, pois suas visitas eram semestrais.
    Em uma dessas inspeções rotineiras, Dr. Adalberto encontra o Zé Vaqueiro cuidando de seu cavalo favorito e lhe agradece. Parabeniza-o por ter visto em seu quarto os panfletos e as camisinhas, pois, conhecia bem a mulherenguice do vaqueiro.
      O vaqueiro relatou ao doutor que no início foi difícil, mas agora já estava acostumado e disse ainda que agora estava usando o preventivo diariamente.
      — Agora, Dr. Adalberto, eu só tiro a camisinha pra mijá e comê mulher.
Dr. Adalberto olha para ele com um misto de humor e apreensão e  pergunta ao vaqueiro por que não estava usando corretamente a camisinha se ouvira a devida explicação e recebera os folhetos informativos.
      Respondendo às indagações do médico, disse que havia ficado meio vexado de ouvir aquela senhora tão séria falando daquele assunto no meio de tanta gente. Quanto aos panfletos, declarou que para ele não tinham valor nenhum, pois era uma pessoa sem leitura de nada.
      — Sei escrever malmente o meu nome e mesmo assim se outra  pessoa escrevê ele com outro talho de letra, eu não consigo decifrá.
Dr. Adalberto saiu dali murmurando para si mesmo:
      — É preciso cuidar melhor dessa gente. Alfabetizar e conscientizar essas pessoas o mais rápido possível, — argumentou tristemente.
      O médico saiu remoendo suas idéias e Zé Vaqueiro ficou ali parado, cabisbaixo, envergonhado e entristecido. Trinta dias depois, procurou o patrão para acertar contas. Disse que iria procurar outro emprego, pois estava cansado de lidar com o gado e cuidar de cavalos.
       Mudou-se para Sertãozinho, São Paulo. Teve sorte, arrumou um bom emprego. Matriculou-se em uma escola primária e concluiu o segundo grau cursando supletivo. Ganhou uma bolada na mega-sena, tornou-se fazendeiro, casou-se com uma linda mulher e morreu aos quarenta e cinco anos de idade, vitimado pela AIDS.
      Deixou mulher e um casal de filhos. Provavelmente infectados.
Sebastian Paulo
LUA E SOL
A escuridão é o segredo do dia         
Sereno da madrugada
São as lágrimas choradas
Que o mar joga na praia
Em forma de melodia
Quando tem raios de sol
Bem cedinho, de manhã
Quando tem marcas na areia         
Que a maré não apagou
Sereno da madrugada
Hoje, ele não serenou
Em noite de lua cheia
O dia não tem segredo
A maré tem muita força
E o mar ruge de medo
Do dia se revelar
É com o balanço do mar êh! êh!
Que o mundo bambeia
É com os raios do sol êh! êh!
Que o dia clareia
CANTO DE LIBERDADE
Abre a porta da gaiola
Deixa o pássaro voar
Encontrar sua companheira
E cantar lá na floresta
A canção da liberdade.
Canto que se ouve ao longe
Lastimoso e tristonho
Deveras não é um canto
É a companheira só
Expressando a saudade.
A gaiola é uma prisão
Que só prende inocente
E o cantar do prisioneiro
É um choro requintado
Que ainda encanta a gente.
Abre a porta da gaiola
Deixa o pássaro partir
Matar a sua saudade
Cantar sua liberdade
Fazer a gente sorrir.
PALAVRAS AO VENTO
Eu sou a terra fértil
E o deserto,
Sou um campo cultivado,
A produção e a fartura,
Sou a fome e a erosão,
Sou um parque infantil,
Escola, creche, hospital...
Eu sou a guerra
E um campo de concentração,
Eu sou a floresta virgem,
A flor, a abelha, o mel...
E ao mesmo tempo sou
Trator, motosserra e o fogo,
Eu sou a vítima,
Eu sou a justiça (justiça?!)
Eu sou o réu,
Eu sou o tudo e nada,
Sou princípio, meio e fim
E se eu quiser mudar o mundo,
Eu posso fazê-lo agora,
Basta dar o primeiro passo
Estender a minha mão,
Jogar palavras ao vento
E esperar que encontrem eco.
Eu quero mudar o mundo
(Para melhor é claro!)
E você pode me ajudar,
É só ouvir a voz do vento
E entender que somos humanos,
Animais, pessoas, gente,
Somos, portanto, o próprio meio ambiente.
Ouça a voz do vento,
Dê um passo! (apenas um!)
E segure a minha mão.
  ÓDIO
O ódio é um vírus maldito
Que rói a alma da gente
Deixa o coração aflito
E desvirtua nossa mente
Espalha pedras no caminho
Embaça nossa visão
Desvia nosso destino
Abre a porta da prisão
A prisão é uma cultura
Onde o vírus prolifera
E ao invés de dar a cura
Desagrega e desmantela
E esse vírus maldito
Vai fazendo uma devassa
Sempre causando conflito
Por todo lugar que passa
Destrói um amor sincero
Cria uma teia de intriga
Transforma paz num inferno
E segrega gente amiga
É mesmo um mal sem cura
Porque sofre mutação
E ao apresentar ternura
Tá querendo é confusão
HEROÍNA
Mulher é a fonte da vida
Rainha da criação
Traz no ventre a semente
Da futura geração
Transforma seu sangue em leite
Pra servir de alimento
Ao ser frágil e pequenino
Que ela colocou no mundo
E seja menina ou menino
Terá sempre o amor da mãe
Mulher guerreira
Que protege bravamente
Mesmo sendo mãe solteira
O filho que é só seu
Mulher casada
Que trabalha o dia fora
E em casa é forno e fogão
É mãe zelosa e amiga
E ainda faz papel de amante
Pra manter a união
Mulher escrava
Que apanha do marido
E sofre sem um gemido
Para o filho não saber
Desabafa escondida
Finge ser mulher feliz
Para o filho não sofrer
Mulher alta ou baixinha
Negra ou branca não importa
Seja pobre ou seja rica
Do homem é a proteção
Receba meu abraço
Meu afeto, meu carinho
E um carinhoso beijo
Dentro de seu coração
A DANÇA DAS ESTRELAS
Quando as palavras se casam
Para formar poesia
O vento recita os versos
O mar faz a melodia
A lua fulgurante
Clareia o palco da vida
E uma plateia de estrelas
Dança e aplaude comovida.

POETAR
Fazer poesia
É que nem masturbar
Com inspiração se escreve
A concentração faz gozar

Fazer poesia
É criar situações
Viver fantasia
Fabricar emoções

Uma poesia inacabada
É como ato interrompido
É um aborto literário
É um tesão sem libido


ALIMENTANDO SONHOS

Era um terreno plano
Dessas terras boas
Pra se fazer uma horta
Mas num fim de semana
Desses que a gente não quer
Nem ouvir falar de serviço
Homens, mulheres, meninos e meninas
Resolveram plantar alegria naquele lugar
Cortaram bambus
Fincaram duas hastes
Numa extremidade e na outra
Em cima, colocaram travessões
Desenhando retângulos
No horizonte daquele sonho
Perto das hastes, um retangulozinho
Mais afastado, um retângulo
Colaram, nele, uma meia lua
Prenderam tudo com um retangulozão
Dividiram ao meio
E no meio do meio
Um círculo
Cujo centro seria
O berço da ilusão
Uma bola que tinha
Mais remendos que originalidade
Nem redonda direito ela era
No mais, eram os pés descalços
Os chutes enviesados
As trombadas
As dezenas de gols
De um lado e de outro
E a total ausência de regras
Uma espécie de gestação que paria
Gritos de gols e vaias e palmas
Pois era exatamente o desdomínio
A causa de tanta alegria
Que só o relógio-tempo
Daria o apito final
É quando a noite joga
Seu manto negro sobre a terra
Mas dos olhos…
Não há escuridão
Que possa apagar o brilho





















HAI CAI




























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